Era nova quando vi um filme que me impressionou. O filme não tinha nada de especial – era daqueles que passavam de tarde na televisão aberta – e seu roteiro era simples: um avião que cai levando no seu bagageiro as sacolas do sistema de correios norte-americano, o USPS. O desenrolar do filme transita pelas histórias de vida que as correspondências carregavam e a influência, por não terem chegado a seu destino, na vida de milhares de pessoas por as cartas não chegarem ao seu destino, numa época que nem e-mail existia. Pedidos de perdão nunca recebidos, agradecimentos e declarações de amor que nunca foram lidos, notícias sobre nascimentos, mortes, separações, casamentos, mudanças e tudo aquilo que compõe a história de vida de qualquer pessoa.

Lembro que essa história simples e que puxava o emocional – como todo filme inocente a que assistíamos na época – me fez notar a interconexão de todos com todos. De como um mesmo fato atinge milhares de pessoas que nem se conhecem. De como fazemos parte de uma mesma teia, queiramos ou não. Lembrei do filme esses dias quando comecei a acompanhar a volta ao convívio social após meses de isolamento, pandemia, medo, insegurança e incertezas quanto ao futuro. Se as sacolas do correio nunca terem sido entregues influenciou a vida de tantas pessoas, imagine o que significa uma pandemia.

Fala-se bastante de como será o mundo pós-pandemia – se é que o pós será pós mesmo ou se viveremos numa constante ameaça de vírus –, mas meu pensamento vai para como estarão as relações humanas após o período de isolamento – para quem o fez – e de mudança de renda financeira, que atingiu todos, num mundo em recessão. O momento de restrições financeiras é o momento em que os valores humanos mais básicos são acionados pelo instinto de sobrevivência, especialmente numa sociedade que colocou o dinheiro acima de boa parte das outras coisas. Este é o lado escuro da sociedade que criamos: a ideia de que o dinheiro pode salvar e resolver tudo. Numa sociedade na qual seja valorizada a comunidade como lugar de segurança e apoio para todos, a questão financeira continua sendo importante, porém com um peso inferior ao das relações humanas. E as relações humanas, pelo próprio atrito que a convivência produz, vão se moldando e alisando arestas.

O que será que aprendemos? Vamos olhar para esse período com amorosidade e observar como estão as relações dentro de casa: será que nossos filhos ficaram mais partícipes? Será que entendemos que poupá-los não é ajudá-los a enfrentar o futuro? Será que a pessoa ao nosso lado é a pessoa que queremos para a próxima década? Será que a vida que temos é a vida que nos faz feliz? Será que o tipo de trabalho que realizamos, e a forma como nos relacionamos com ele, é o que queremos para nossos próximos anos? Será que nos satisfaz? Será que moramos e vivemos como e onde gostaríamos de estar? Será que notamos que temos – ou não temos – o equilíbrio emocional para não ser tão dependente dos outros emocionalmente? Será que cuidamos bem dos nossos velhos queridos? Será que somos seres que contribuem para uma visão mais comunitária ou individualista?

Sei que tem gente que diz que não tem opção, assim como tem gente que diz que todos têm opção. Eu acredito na nossa capacidade de criar nossa realidade e ao mesmo tempo reconheço os limites que temos para agir e conseguir as coisas. Pode ser paradoxal, mas é neste espaço, que engloba nossa liberdade de atuação e onde nosso esforço individual pode se manifestar versus o ambiente externo que pressiona para nos moldar e encaixar, que a vida flui. Que construímos a nossa vida, produto de nossas escolhas por mais reduzidas que possam parecer.

O momento de sair para esse novo tempo está chegando e, sinceramente, com tantas mortes e sofrimentos que vêm acontecendo, espero que tenhamos, pelo menos, feito a nossa lição de casa e avaliado a nossa vida. Talvez as decisões levem tempo para serem tomadas. Talvez nem seja fácil falar delas. Mesmo assim, poder avaliar o nosso conceito de felicidade e o que queremos e podemos fazer, considero que seja um bom tributo que honra tudo o que passamos como sociedade.