Tenho falado sobre como, na sociedade atual, ser homem implica ter privilégios. Muitos consideram privilégio somente os benefícios sociais que recebe quem ocupa altos cargos e/ou tem dinheiro: atendimento preferencial e exclusivo, destaque social, etc. O privilégio ao qual costumo me referir é o espaço social especial que, vários segmentos da nossa sociedade, oferecem ao homem, pelo simples fato de ser homem.

Vários me dirão que as mulheres e idosos também ocupam espaços sociais de privilégio. Concordo. A cultura machista tem por base a distinção. A diferenciação. Enquadra as pessoas em modelos predefinidos. Geralmente opostos. Cada um no seu quadrado. A fluidez e a quebra de fronteira dos novos tempos rompem com o conceito rígido de identidade. Assim, sem saber ao certo quem se é, luta-se pela retomada das fronteiras, dos modelos rígidos, sob o discurso de ordem social. Para mim, é só dificuldade de Ser, além das formas e do feedback social. Natural nestes tempos de transição de valores.

Os privilégios sociais do universo masculino estão conectados com Poder, e os do feminino, com a Fragilidade, que os mais românticos chamam de Delicadeza – só para ressaltar duas correlações diretas, nesse complexo ambiente das identidades. O poder, por si só, não é negativo. Especialmente quando ele se manifesta como o Poder Para, conceito que criei no Movimento Humano Poder Isonômico. O Poder Para se diferencia do Poder Sobre, por não precisar da subjugação para existir.

Os privilégios masculinos foram herdados de uma cultura antiga. Cultura que era transmitida desde cedo, no lar. O Poder Sobre podia ser agressivo e violento, e como todos sabem, leva até hoje ao feminicídio. Ou podia ser discreto. Mostrando uma braveza contida. Ameaçadora. Que carregava, muitas vezes, na sua sutileza, uma violência tão daninha como a da agressão física. E, por se tratar de uma violência dissimulada, a vítima nem sempre sabia, conscientemente, que estava sendo intimidada. Somente sentia a intimidação e começava a agir para evitar  “irritar” o companheiro.

Às vezes, o Poder Sobre era menos grotesco. Lembro, por exemplo, do comportamento, quase cerimonial, que minha mãe impunha em casa para receber e atender meu pai. O Poder Sobre que meu pai exercia se expressava em ser quem definia e decidia as questões mais relevantes da família.  Até nos prazeres e passeios sua voz que comandava. O lazer pertencia a ele, e a família tinha que segui-lo. Sempre sob a áurea de “trabalha muito”, estávamos ali para acompanhá-lo naquilo que ele desejasse. Em troca, era um pai provedor.

Carrego, ainda hoje, esses traços. Costumo esperar meu marido à noite e o recebo com atenção. Já me perguntei várias vezes se devo ou não fazer isso. Creio que o ponto que me ajuda a decidir é notar o quanto sinto a nossa relação equitativa. O quanto essa atenção dispensada não me coloca em lugar de submissão. O quanto eu tenho voz ativa nas decisões do casal. Essa consciência não significa que tudo esteja claro entre nós dois. É uma construção. Diária. Ambos nascemos e fomos criados numa cultura machista. O que facilita, no nosso caso, é o diálogo e abertura que meu marido tem para se rever e criar um novo modelo masculino.

Dos tempos da minha mãe até hoje, muita coisa mudou. As mulheres ganharam mais espaço, mais poder. A distribuição de poder gerou novas configurações sociais. Evidentemente, num ambiente social complexo como o que vivemos, existem ainda relações como as que relatei acima. Muitas. Mesmo assim, considero boa parte mais equilibrada. Embora quase todas ainda ofereçam um lugar de privilégio aos homens.

Vou dar um exemplo do que pode ser privilégio masculino na atualidade: ser um homem irresponsável. Especialmente no que se refere à paternidade. É bastante comum ouvir histórias de pais que não assumem financeiramente seus filhos. Principalmente quando se separam. Nas classes baixas é mais comum que esse comportamento seja apoiado pelos pais, avós da criança. Também, costuma ser apoiado por mulheres casadas com esse homem.

Uma funcionária doméstica que entrevistei há pouco tempo me contou que, na audiência sobre a pensão alimentícia, a nova mulher do pai de sua filha questionou por que queria dinheiro se ela trabalhava. Oi? A filha é de ambos, não é mesmo? Depois da audiência, minha entrevistada soube que a atual mulher apanha do marido, como ela própria apanhava. A família inteira apoiando esse rapaz e criticando a ação judicial que minha entrevistada tinha movido contra ele.

Casos como esse acontecem em todas as camadas sociais. Mais ou menos grosseiros. Conheço uma pessoa célebre no meio artístico que vive viajando e brindando as novas namoradas com jantares em restaurantes luxuosos, enquanto atrasa constantemente a pensão para o filho e deixou de pagar o seguro de saúde, pontos decididos na separação. Quem não conhece alguém que tira tudo do seu nome e justifica, perante a justiça, que não tem renda? E a família, aceita. Mesmo quando ela se omite.

A irresponsabilidade masculina está intimamente associada ao machismo. É uma forma, talvez às avessas, de demonstrar poder. O Poder Sobre, que subjuga e define o destino de outros. Uma pena que, entre esses outros, estejam também os próprios filhos.

Abrir mão do privilégio de ser homem na nossa sociedade não é algo prazeroso. A questão, como meu marido me disse, é uma questão moral.