As acusações trazidas a tona sobre o médium João de Deus no fim do ano me chocaram pela gravidade: abuso sexual de mulheres e de crianças. Gravíssimo. A parte do enriquecimento não me surpreendeu por ter percebido, a única vez que estive por lá, o foco que tinha no dinheiro, toda a organização em torno do médium. A espiritualidade, como eu a conheço, está para servir e menos, bem menos, para receber. Entendo que precise sobreviver, e para isso precise de fundos. O que me incomodou na época foi a cobrança de praticamente tudo e forma como era feita a cobrança. Os produtos eram vendidos enfatizando que tinham sido: “trabalhados espiritualmente pelo João de Deus“. Me lembrou o Vaticano com suas medalhinhas “consagradas pelo Papa”.

Outro ponto que me chamou a atenção foi o prazer no exercício de poder sobre as pessoas que vários – embora nem todos – da equipe do médium exerciam sobre as pessoas que lá iam pela fé. Sabe aquela síndrome do “pequeno poder”, que se manifesta quando pessoas comuns são colocadas numa posição de poder (mesmo pequeno) sobre outras? Isso sim me alertou de que alguma rota errada estava entranhada por lá. Por estudar o poder, e de certa forma, lidar com ele no dia a dia, sei que isso é bem comum. O que era dissonante era ser tão marcante num local que pregava tanto amor.

Agora, devo confessar, que o qua me deu um certo “cansaço de alma”, como diria uma antiga mestre, foi confirmar mais uma vez nossa capacidade em colocar tudo num mesmo saco. A notícia do médium ser acusado de ter abusado sexualmente de mulheres e crianças e que tenha se tornado rico fez com que se negasse a possibilidade dele ser médium e de fazer curas espirituais. O que uma coisa tem a ver com a outra?

Vamos lá: quem disse que medium é santo? Ou, que quem trabalha com a espiritualidade o é? Aliás é só acompanhar a longa lista de sacerdotes católicos acusados de pedofilia, desvio de dinheiro… Ou de pastores evangélicos enriquecidos no seu patrimônio pessoal com os dízimos e doações que recebiam em nome de Deus. Todos podem ao mesmo tempo ter ajudado, curado e feito o bem para muitos, não é mesmo? Ou todo guia espiritual, necessariamente é só do bem?

Concordo que deveria. Mais do que um ser humano comum. Pela posição que ocupa. É uma obrigação moral. Só que precisamos lembrar que todos estamos aqui nesta terra caminhando e que somos, sempre, seres humanos. Que um sacerdote católico, rabino, pastor, médium ou qual outro ser com poder espiritual é, antes de mais nada, humano. E que como humano, é um ser multidimensional. Com diversas facetas que nem sempre são coerentes entre si. Aliás, ser totalmente coerente na condição humana, vamos convir, é uma virtude para poucos. Pouquíssimos.

Assim, independente do que o outro faz, creio que vale a reflexão neste início de ano, com um novo governo no Brasil, sobre os seguintes pontos: o primeiro, por que precisamos idealizar as pessoas? Por que queremos nelas a coerência absoluta e a virtude de – quase – perfeição? Virtude da qual, cada um de nós, está longe de estar? Segundo: por que associamos qualquer serviço espiritual com perfeição? Por que baixamos a guarda e com ela a nossa capacidade de observar e criticar, quando temos na nossa frente um líder? Especialmente, se ele é um líder espiritual. Por que queremos que ele seja menos humano? Só por que ele sabe mais? Por que ele prática a espiritualidade?

E por último, por que colocamos tudo num mesmo saco? O João de Deus, até onde eu consegui perceber, é medium. E dos bons. Acredito que por conta disso, ele tenha feito curas físicas. Sinceramente, não dúvido. Assim como não dúvido da probabilidade dele ter uma ética corrompida. E que ele pode ter abusado sexualmente de mulheres e crianças. Para mim, as coisas são separadas. O que não significa que um dia voltaria a visitar Abadiânia. Assim como nunca mais voltei. Minhas escolhas passam por maior integridade. Só que não tenho a ilusão de encontrar guias perfeitos. Caminho pela trilha do poder e da espiritualidade tempo demais para ter aprendido, que somos seres perfeitos, na nossa imperfeição. E que o caminho espiritual só é um caminho sem fim, que em nenhum momento, nos torna menos humanos. Só um pouquinho, mais conscientes.

Admirar não deveria significar santificar. Amar e acreditar não deveria significar fechar os olhos à lucidez. Criticar e estar atento, de olhos bem abertos, também, é um ato de amor.