Num típico domingo de outono londrino, conversávamos com um amigo quando o assunto da família real surgiu tão naturalmente quanto é falar do tempo nessa cidade. A mais importante e conhecida monarquia mundial veio para a conversa, primeiro, através da discussão do conceito de propriedade sobre os imóveis que a Inglaterra tem – tinha descoberto no dia anterior que, na prática, quem compra um imóvel na Inglaterra não é dono final do terreno ou da “terra” na qual o imóvel está construído – e de como, no fim de contas, todas as terras pertencem à rainha, a seus familiares e, se entendi bem, a algumas poucas famílias aristocráticas. Não sabia que, quando falávamos “estamos na terra da rainha”, estávamos sendo tão literais assim.

Tradição, concentração de poder e aristocracia. Meus pensamentos me levaram para a reflexão sobre como um conceito que para mim soa tão antigo pode se manter até os dias de hoje com aparente, pelo menos aos olhos de uma visitante, pacificidade; sobre como a tradição pode estar está tão conectada com a, literalmente, posse de terra. 

Estava eu elaborando um julgamento frio sobre a concentração de terras nas mãos de poucas pessoas, quando lembrei da minha ida à Índia no início do ano e de como, aos olhos julgadores dos estrangeiros, muitas coisas parecem terríveis e antiquadas, mas que, culturalmente, estão estabelecidas e fazem parte das raízes da sociedade, tornando-a única. Tenho aprendido, aos poucos, devo confessar, que o julgamento estrangeiro – seja este de nacionalidade ou de pertencimento a uma bolha diferente – tende a ter o distanciamento de quem nada ou pouco sabe daquela realidade. Ao mesmo tempo, costuma ser o outro, bendito “outro”, quem aponta o que já, pelo hábito, nem notamos.

Lá estava eu absorta nos meus pensamentos quando minha atenção se voltou para a conversa, que tinha fluído das terras da rainha para o casal sensação: Meghan e o príncipe Harry. Não tinha pegado o início da conversa, mas a frase que me fez cair sem paraquedas naquela roda de conversas teve o impacto suficiente para me trazer de volta: “aqui ninguém gosta da Meghan”. É óbvio que a pesquisadora aqui quis saber o motivo para essa afirmação, especialmente porque vivo na bolha em que todos amam a Meghan.

Ao longo da conversa, consegui entender os pontos colocados: o papel que a Kate, Duquesa de Cambridge, cumpre é um papel que, segundo o protocolo, não pode chamar mais a atenção do que o príncipe William, futuro rei da Inglaterra. Desde que acompanhei, junto com todo o planeta, a vida do casal Meghan & Harry no seu tempo como figuras públicas da monarquia inglesa, sempre entendi que a Kate não poderia, mesmo que quisesse e tivesse as qualidades para isso – fato que eu duvido porque me parece ser de outro temperamento –, fazer e agir da mesma forma que a Meghan. Ela é a futura rainha e isso, queira ou não, exige dela outra postura. Em tempos de guerra, por exemplo, a população espera um líder firme, seguro, atuante e amoroso. E, me parece, a Kate transmite isso, dentro de seu jeito inglês de ser. Tenho minhas dúvidas se a Meghan seria capaz de passar essa segurança. Culturalmente falando.

À Meghan coube um lugar mais livre e, por isso, ainda sendo norte-americana, podia se permitir posturas mais modernas, atuais e, de certa forma, descompromissadas. Ela e o Harry foram e são fundamentais para questionar qual é a tradição obsoleta e qual a tradição digna de ser levada adiante. Como todos que têm o dom de questionar valores arraigados, foram expulsos do ambiente, não sem antes deixar o rompimento necessário que areja o que está velho. Por isso entendo que exista quem possa não gostar dela – dentro os quais deve existir aqueles que se identificam com o passado e todo seu simbolismo e tremem com os ares frescos dos novos tempos – e há aqueles que a amam.

O ponto que me chamou mais a atenção, ao final da nossa conversa, foi como todo o peso do desfecho acontecido – a renúncia do príncipe Harry à monarquia e a mudança do casal para a América do Norte – recai sobre a Meghan e sua, suposta e quase certa, inimizade com a Kate. Estamos no final de 2020 e ainda a sociedade atribui à mulher a culpa e a responsabilidade por todo o mal da sociedade. Mesmo em terras londrinas, ou melhor, da rainha, e com toda a modernidade que esta cidade possa representar.  

Esqueceu-se todo o comportamento pregresso do Harry ao longo de sua vida – e que o levou a ganhar diversas repreensões públicas da sua avó e pai – em que mostrava, claramente, se encaixar pouco com a rigidez que a vida monárquica inglesa exige. Aliás, ele próprio foi deixado absolutamente de lado. Ele não conta. O que conta é uma mulher – linda por fora e horrorosa por dentro – que o enganou, enfeitiçou e o fez abdicar. Coitados desses homens que nem opinião nem vontade própria conseguem ter, mesmo em tempos modernos. Que horror essas mulheres que com suas artimanhas conseguem o que querem dos indefesos homens.

Sinceramente, quanto poder se outorga a nós, mulheres, e quanto medo isso deve gerar na sociedade. Medo que explica, e muito, o machismo estrutural que rege as nossas sociedades há séculos. Como fica fácil cair na armadilha da “briga entre mulheres” – ciúmes, inveja, raiva – para justificar um fato que se tornará histórico, da mesma forma como foi a decisão do Príncipe Edward de renunciar à coroa em nome do seu amor por Wallis Simpson, e que o tempo tem mostrado que, apesar de toda a culpa recair sobre ela, o Edward não era assim, uma marionete ao vento.

Em tempos contemporâneos, precisamos estar atentos para não cair em armadilhas antigas e, mais do que nunca, observar se por trás das críticas ao comportamento da Meghan, por exemplo, não tem também, além do machismo, o racismo e o menosprezo à “não realeza” que ela representa. Devemos lembrar que, como foi divulgado possíveis comentários racistas que essa corte costumava emitir sobre o filho de Meghan com o príncipe. 
Quanto de racismo, machismo, classismo, verdade e mentira há nessa história toda? Provavelmente só saberemos com os anos, mas poder conversar, concordar, discordar e promover reflexões de ambos os lados é um dos grandes prazeres de estar com bons amigos.