Vivendo o isolamento semana após semana e notando as suas implicações na vida das pessoas, faço parte do grupo de pessoas e estudiosos que acredita que a nossa sociedade irá mudar pós-pandemia da Covid-19. Só que a minha ideia de mudança, em função do impacto que a pandemia está causando no mundo, de certa forma, era generalizada. Como pesquisadora me obrigo a fazer o exercício de olhar para os grupos da nossa sociedade e aplicar em cada um deles o mesmo assunto para entender como cada um reagiria ao mesmo estímulo. Talvez por estar reconhecendo as sérias implicações que essa pandemia trará nas nossas vidas, terminei pensando na sociedade como um bloco. Minimizei as diferenças dos efeitos nos diversos segmentos sociais, até o momento em que li a entrevista que a atriz Taís Araújo concedeu à jornalista Mônica Bergamo, publicada na Folha de São Paulo.

Ao longo da entrevista, Taís se mostra sensível e sincera – como ela me pareceu ser de fato no dia em que dividimos o palco num evento. Ela relata as dificuldades de ficar em isolamento junto com o marido, o ator Lázaro Ramos, e os dois filhos pequenos. De como eles dividem as tarefas domésticas e de como é cansativo fazê-las, somando a atenção necessária que os filhos exigem. Num determinado momento da entrevista, enquanto Taís reflete sobre os efeitos da pandemia na sociedade, diz: “De uma coisa eu sei que não preciso: uma casa desse tamanho. Mesmo. Quando a gente comprou a casa, ela dizia respeito às nossas vitórias. Era a concretude das nossas conquistas. De dois negros que venceram pelo trabalho, pelo estudo, pela dedicação, num país em que tudo estava ao contrário pra gente. […] Mas o símbolo das nossas conquistas não precisa ser uma casa. A gente não precisa disso tudo. Isso já foi. Tudo vai ressignificar agora. O mundo não quer mais saber de nada disso.”

Suas palavras me levaram para as lembranças das casas de tantas pessoas que conheço –e também das minhas próprias ambições e conquistas – e do quanto realmente os bens materiais, especialmente a casa que se habita, são o símbolo de conquista num mundo onde o ter – muito graças à desigualdade social que nos assola – cataloga quanto de sucesso temos ou tivemos na vida. Esse conceito permeia todos nós. Faz parte da nossa realidade e, por conta disso, a sensibilidade da Taís me tocou. Porque quando se faz uma reflexão como a que ela fez há um descolamento da visão de mundo do segmento ao qual se pertence. Isso representa os passos da Individuação, tão bem colocado por Jung: o processo em que nos tornamos um indivíduo autônomo, pleno.

Para pessoas como Taís, que reflete e se aprofunda nas suas próprias questões, o ponto não é não poder ter. Mas optar por ter menos mesmo com condições financeiras para ter mais. Enfrentar o círculo social com algo que simboliza ser menor. E digo enfrentar porque é isso mesmo. Existe uma cobrança de cada segmento para que seus membros cumpram a mesma cartilha. Especialmente nos núcleos mais conservadores – embora não acredito que a Taís faça parte deles –, o status quo é relevante, os estereótipos são mais rígidos, os códigos de sucesso ou fracasso mais marcados. Há necessidade da obviedade para garantir seu espaço no status quo desejado.

Já para as pessoas menos conservadoras o status quo é mais flexível e amplo. Os códigos de sucesso e fracasso estão sendo reescritos há um bom tempo. É esse segmento que puxará as mudanças pós-pandemia. Olhar para ele é acompanhar os caminhos mais diversos que poderemos seguir, por ser o segmento que tem trazido as novas formas de ser e viver nesta época de transição de valores.

Há ainda os mais vulneráveis socialmente. Os que, sem dúvida, irão sofrer mais no período pós-pandemia. Com pouco preparo e instrução, são os que ficarão desempregados mais facilmente, sendo também os que menos chances terão de conseguir empregos. São aqueles cujo foco é poder comer para viver. Poder pagar a moradia em que se encontram para ter um teto. Para eles, o ter é uma questão de sobrevivência, nem sempre de diferenciação.

Mesmo pensando nesses três grandes grupos de pessoas que compõem a sociedade, continuo acreditando que modificaremos nossos valores após o isolamento se abrandar e a pandemia ser controlada. O que fará que mude nossa forma de ver a vida e o mundo. O que nos levará a mudar nossa forma de agir nele. Devemos lembrar que a transição de valores vem acontecendo há décadas de maneira consistente e a pandemia, de certo modo, só precipita que a mudança de valores se concretize. Portanto, a luz do novo tocará todos, mesmo que com intensidades diferentes. Acreditar que algum segmento por mais conservador ou vulnerável que for, não será atingido pelos novos valores sociais, significa ignorar nossa interconexão. Fazemos parte de um mesmo sistema – não devemos esquecer. Por outro lado, acreditar que todos reagirão ao mesmo estímulo da mesma maneira, é esquecer que hoje, mais do que nunca, somos uma sociedade cheia de matizes.

Por isso, que tal aproveitarmos estes tempos de isolamento para refletir em qual grupo gostaríamos de seguir a vida? Independentemente daquele ao qual pertencemos. Porque se tem uma coisa que a pandemia nos está permitindo é o direito de escolha.