Carnaval brasileiro… Logo que cheguei ao Brasil, em 1985, me apaixonei pelo Carnaval carioca. Nesses dias de folia, costumava ficar em casa assistindo, pela televisão, às escolas de samba do Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, fui compreendendo cada quesito que era considerado na avaliação que daria o título de campeã a uma única escola de samba, compreendendo os traços únicos de cada escola e admirando, cada ano com maior profundidade, a grandiosidade e profissionalismo dessa que é a maior festa popular do mundo. Profissionalismo à brasileira, é sempre bom destacar. Mal imaginava eu que, décadas depois, iria me apaixonar e casar com um genuíno apaixonado e apoiador do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.

Lembro da primeira vez que estive na Avenida – me desculpem os paulistas, sociedade que amo e que escolhi para conviver diariamente, mas avenida relacionada ao samba e às escolas de samba só tem uma para mim: a Sapucaí. Parecia irreal, euzinha, por anos mera telespectadora dessa festa e manifestação cultural extraordinária, estar não só numa frisa assistindo à passagem das escolas de samba do Carnaval carioca – e foi aí que entendi que, mesmo às vezes sendo cansativo, é, sem dúvida nenhuma, o melhor lugar para assistir e “estar” na Avenida – como desfilando naquela que se tornaria a escola do meu coração: a Beija-Flor de Nilópolis.

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Graças ao meu marido e amigos que, geração após geração, trabalham na organização, desfilei, cantei, vibrei e aplaudi a exuberância criativa do folclore brasileiro durante anos. Para quem vê o Carnaval como um mero espaço-tempo de loucuras, ilegalidades e aberrações, talvez valha um segundo e terceiro olhar: a capacidade criativa e a organização do desfile de samba na Sapucaí – que faz desfilar, ao mesmo passo e ritmo, mais de três mil pessoas que se encontram, pela primeira e única vez, nesses noventa minutos de glória – foram temas de estudo de universidades e consultorias internacionais. Para quem assiste sem se envolver, é só uma escola atravessando a Avenida. Para quem vive o samba, é quase um ano de dedicação, muitas vezes de graça. Só por amor.

2021 sem celebração pública do Carnaval. Sem desfile na Avenida. Sem as baterias das escolas energizando cada célula do meu ser. Além da permissão social para extrapolar, foi-nos tirada a alegria da celebração coletiva. Foi-nos tirado algo que faz parte da cultura popular brasileira e que lhe é tão característico quanto o futebol – embora este último esteja aquém dos tempos de ouro do Brasil. É estranho. E, quem sabe, poderia ser o pretexto para mais uma queixa… até o momento em que li a entrevista do Neguinho da Beija-Flor na Folha de S. Paulo. Que lição!

Se ele, um dos ícones do Carnaval carioca, totalmente pacificado, compreendeu que desfilar agora seria fazê-lo “por cima de cadáveres” – refirindo-se, é claro, a todos os mortos devido ao Corononavirus , só tenho que concordar. Ele está certo. A vida pode seguir sem Carnaval, num ano que, especialmente pelos outros, deveríamos nos cuidar. Em dezembro passado, quando saíamos da UTI após visitar minha sogra, que veio a somar às estatísticas de mortes em decorrência da Covid-19, era difícil assistir às pessoas desrespeitando as regras – feitas para cuidar, especialmente dos mais frágeis. Creio que ninguém nega que a atitude dos que não estão nem aí para o controle da transmissão do vírus seja um ato explícito de egoísmo e/ou problemas mentais.

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Muitos vivem como se o mundo fosse acabar amanhã, tamanha a ansiedade de se reunir, festejar e quebrar o isolamento social. Para mim, muito provavelmente é uma questão de desequilíbrio emocional. Como disse Neguinho da Beija-Flor: “não pode, não pode”. E olha que esse “não pode” tem suas fronteiras largas: pode-se viajar para hotéis e pousadas que se adequaram às regras das autoridades sanitárias; pode-se alugar uma casa e passar dias entre amigos e familiares que fizeram quarentena. E, antes que me acusem de elitista, sim, eu sei que nem todos podem pagar por dias assim e que o Carnaval de rua é uma celebração que não tem substituição. É sempre mais difícil para quem tem menos dinheiro.

Infelizmente estamos num momento de sacrifícios pelo bem comum. Como disse num texto no início da pandemia, se todos colaborassem e fizessem a quarentena, sairíamos desta situação, que já se alastra há mais de um ano, bem mais rápido e com menos mortes. Quanto mais adiamos a decisão de sacrifício, mais demoramos a sair, e mais demoraremos a voltar a vibrar vendo a nossa escola passar.

PS. Na foto no meio deste texto, Lucas Bilate, meu enteado, no seu primeiro desfile como ritmista na bateria da Beija-flor em 2007.